abril 09, 2020

Fake it 'till you make it

"Pretend it's normal" tem sido meu mantra nesses últimos dias.

Eu faço de conta que é normal ficar em casa, de quarentena. Faço de conta que é normal evitar contato físico com as pessoas, faço de conta que não quer abraçar minha sobrinha, que é muito normal passar álcool em qualquer lugar que eu tenha sido tocada por algum estranho na rua.

Eu faço de conta de que é normal chegar em casa como quem sai de uma câmara radioativa de fissão nuclear: tirar sapatos, lavar as mãos, deixar a roupa para lavar, passar água sanitária nos produtos que vieram da rua, tomar banho. Faço de conta que é normal sair com os cabelos presos para que não precise tocar no rosto, e que é normal sair de máscara, e que é mais normal ainda ver todos de máscara, e ter sempre um spray de álcool ou desinfetante para esterilizar tudo que for ser tocado.

Eu faço de conta que é normal lidar com doenças e hospitalizações e cirurgias em meio ao caos, e faço de conta que é normal a sensação de que não está limpo o suficiente e medir cada gesto, meu e dos outros, e ficar traçando os pontos onde os dedos tocaram, maçaneta, cabeceira da cama, braço da cadeira, porta do armário, e ficar lembrando se chegou a lavar as mãos antes, se chegou a trocar de luvas entre o paciente anterior e agora, se eu mesma fiz isso.

Eu faço de conta de que é absolutamente normal viver esse medo do invisível, o monitoramento constante de temperatura, tosse, dores, tanto minhas como dos outros, sintomas, vestígios do mal que se esconde embaixo das unhas, na sola dos sapatos, no ar que sai dos pulmões.

Então é assim o fim dos tempos. Já pensei isso tantas e tantas vezes, só neste 2020, que está ficando um pensamento desbotado. Já não tem força a expressão fim dos tempos, de tanto que esticamos e tiramos do lugar. Mas é isso. O fim do mundo não chega com uma explosão (graças aos céus) mas com um suspiro, mesmo, com o ar úmido saindo quente dos pulmões, as gotículas voando feito bolhas de sabão ao vento, sem controle ou direção, pousando onde lhe convier, estourando deixando a mancha indetectável lá.

E eu faço de conta que é normal rir disso, de que existem mesmo zumbis, aqueles que não acreditam no vírus porque não o enxergam (nem quero entrar no capítulo de que nossos governantes não acreditam no vírus, um terraplanismo imperdoável, que já está custando várias vidas) e se não se enxerga não deve ser verdade, deve ser montagem da mídia. Sim, caro zumbi, todos aqueles corpos empilhados, espalhados, embalados, é tudo ficção, é cenário, o mundo inteiro está mentindo e só você, floquinho de neve no interior de Paranapiacaba, é quem sabe a verdade.

Outra palavra tão vestida que chega a estar rasgada, sem ser possível de ser remendada. O que é verdade? E de que adianta saber a verdade? De que adianta saber que água, sabão, álcool, máscara, luva, tudo isso é hoje item de primeira necessidade, e que hidroxicloroquina, apesar de tanto esforço de diversos governos e desgovernos por aí, não teve sua eficácia ainda comprovada cientificamente. De que adianta estudar e conhecer o método científico, se basta um microfone dourado e um chapéu de cowboy pra invalidar séculos de pensamento e construção de conhecimento?

Mas eu sigo fazendo de conta que é normal. Venho fazendo de conta que é normal. Venho seguindo a vida normal já há tanto tempo, que o vírus, o caos, mais um medo, são só mais alguns itens da longa lista de absurdos que venho vivendo e fantasiando de vida normal.

Então eu acordo com o despertador, mesmo estando "em férias" no trabalho. E sigo esticando o conceito de normal, e penteando o cabelo, e tomando café, e lendo as notícias, e preparando almoço e lanche, e sigo estudando, e sigo respirando, e me entorpecendo de seriados para conseguir dormir, para que a vida siga, não sei por mais quanto tempo, normal.

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