abril 23, 2020

Tempos estranhos

Tempos estranhos de sonhos estranhos, desejos estranhos, vontades estranhas.

Tenho acordado muito mais cedo do que o normal, e tenho ido dormir muito mais cedo que o normal, como se meu corpo se acostumasse com a luz solar e dependesse disso. Desde que começou a quarentena, em longínquas cinco ou seis semanas atrás, já queimei várias lâmpadas na casa, uma sendo no meu quarto e uma sendo no banheiro. Coisas estranhas têm acontecido também.

Hoje sonhei com um roteiro inteiro, estava numa situação de fuga, esconderijo, como já aconteceu em diversos outros sonhos destes tempos estranhos, mas desta vez eu tive uma ideia genial. E eu percebi que estava dormindo, então disse para mim mesma que deveria anotar a minha ideia genial, porque era revolucionária demais para ser esquecida.

Era uma ideia para um filme, para um roteiro, para um novo tipo de filmes, que seria revolucionário e inovador.

Sim, eu lembro. Com todos os detalhes. Minha mente é estranha assim.

Não, eu não vou dividir aqui a minha ideia genial e inovadora. Até porque não é tão inovadora nem tão genial como me pareceu no sonho.

Ou talvez a estranheza não tenha chegado ao fim e a sociedade ainda não esteja preparada, vai saber.


abril 15, 2020

A opressão da insignificância

O que tem me salvado nesses dias de loucura, aulas online e incertezas, são as conversas online com amigos por vídeo. Marcamos um horário, de fone de ouvido a postos, ligamos nossas câmeras dos telefones e simulamos a normalidade, estamos no sofá de casa, no chão do quarto, a quilômetros de distância, mas por aquele tempo da conversa em que podemos ver mesmo que não possamos tocar, estamos próximos. Não é perfeito, mas tem ajudado.

Normalmente as conversas começam com relatos de medos e questionamentos, ansiedades, crises de choro e de riso (rindo nervosamente), depois é como se estivéssemos em volta do fogão preparando um risoto, ou em volta da mesa com nossas taças de vinho e os assuntos mergulham na normalidade, no compartilhamento de experiências. E num desses momentos, numa conversa recente, estávamos falando de astrologia, mundos, Árvore da Vida e alguém comentou como havia se sentido pequena, minúscula, na dimensão histórica da vida no planeta, na galáxia. É o que eu chamo de opressão da insignificância. Eu falei, e rimos, mas concluímos que sim, a insignificância oprime.

Nestes dias em que números cada vez maiores, gigantescos, são constantemente bombardeados na nossa cara, sempre na casa dos milhares, milhões, bilhões, seja de mortos, contaminados ou dólares, cada vez mais somos colocados numa perspectiva de diminuição, de perda de significado, de invisibilidade. A gente se perde nesses números gigantes, nessa dimensão inalcançável, e se afoga.

Que inclusive é uma sensação tanto de embolia pulmonar como ataque de pânico, um afogamento no próprio ar, como se o pulmão se fechasse em si mesmo e não deixasse o ar entrar, por mais força que o diafragma faça, por mais dor que a gente sinta.

O que, somado ao pavor que me tomou, talvez tenha sido o que eu senti quando tinha uns oito para nove anos, depois de assistir a um programa do Globo Repórter sobre o fim do mundo. Eu já devo ter contado essa história, aqui ou em blogs anteriores, mas é um marco pra mim, e talvez seja o momento de contar de novo. Contar clareia, como me ensinaram.

O programa apresentava algumas alternativas sobre como se daria o fim do mundo. Por uma guerra nuclear (e essa era uma grande possibilidade, uma vez que o Muro de Berlin ainda estava em pé e havia toda a ameaça que vinha dos dois lados), por uma explosão do sol, pelo fim da camada de ozônio, e mais alguma outra que não vou me lembrar. Aquilo era tão mas tão mas tão real pra mim quanto a certeza de a grama do quintal de casa era verde e que o céu era azul. A possibilidade de tudo aquilo acontecer era enorme, gigantesca, e eu deitava na minha cama de criança rodeada de bonecas e brinquedos e sentia o teto se fechar em cima do meu peito e o desespero tomar conta de mim. O mundo iria acabar, eu tinha certeza, e seria logo.

Quando o Muro de Berlin colapsou, e pelo menos uma ameaça saiu da lista, eu lembro de pensar apenas, ok, uma possibilidade a menos. Quando as Torres Gêmeas colapsaram e a opção da guerra voltou à mesa é que me dei conta do quanto tempo carregava em mim o peso do fim dos tempos. A opressão da insignificância. A certeza de que não adianta o quanto eu lute e mude e conscientize e fale e transforme, nada disso tem valor ou sentido perto da vastidão do Nada Sem-Fim do universo em movimento.

2020 tem sido um teste de ferro para os nervos. Já tivemos ameaça de guerra, já tivemos incêndios e crise econômica, agora temos vírus, temos vulcões, temos fumaça tóxica. Nada que possa ser impedido ou mudado por mim. Tudo gigantescamente maior e mais poderoso do que eu possa conceber ou interferir de alguma forma. A minha insignificância novamente me oprimindo, me apertando o peito, me impedindo de respirar.

E entre o pavor de ver tudo acabar e a vontade de que tudo acabe logo a gente tenta não pirar muito, a gente tenta seguir a vida (de dentro de casa mesmo), a gente se apega aos pequenos prazeres, como dar risada com os amigos pela câmera do celular.




abril 09, 2020

Fake it 'till you make it

"Pretend it's normal" tem sido meu mantra nesses últimos dias.

Eu faço de conta que é normal ficar em casa, de quarentena. Faço de conta que é normal evitar contato físico com as pessoas, faço de conta que não quer abraçar minha sobrinha, que é muito normal passar álcool em qualquer lugar que eu tenha sido tocada por algum estranho na rua.

Eu faço de conta de que é normal chegar em casa como quem sai de uma câmara radioativa de fissão nuclear: tirar sapatos, lavar as mãos, deixar a roupa para lavar, passar água sanitária nos produtos que vieram da rua, tomar banho. Faço de conta que é normal sair com os cabelos presos para que não precise tocar no rosto, e que é normal sair de máscara, e que é mais normal ainda ver todos de máscara, e ter sempre um spray de álcool ou desinfetante para esterilizar tudo que for ser tocado.

Eu faço de conta que é normal lidar com doenças e hospitalizações e cirurgias em meio ao caos, e faço de conta que é normal a sensação de que não está limpo o suficiente e medir cada gesto, meu e dos outros, e ficar traçando os pontos onde os dedos tocaram, maçaneta, cabeceira da cama, braço da cadeira, porta do armário, e ficar lembrando se chegou a lavar as mãos antes, se chegou a trocar de luvas entre o paciente anterior e agora, se eu mesma fiz isso.

Eu faço de conta de que é absolutamente normal viver esse medo do invisível, o monitoramento constante de temperatura, tosse, dores, tanto minhas como dos outros, sintomas, vestígios do mal que se esconde embaixo das unhas, na sola dos sapatos, no ar que sai dos pulmões.

Então é assim o fim dos tempos. Já pensei isso tantas e tantas vezes, só neste 2020, que está ficando um pensamento desbotado. Já não tem força a expressão fim dos tempos, de tanto que esticamos e tiramos do lugar. Mas é isso. O fim do mundo não chega com uma explosão (graças aos céus) mas com um suspiro, mesmo, com o ar úmido saindo quente dos pulmões, as gotículas voando feito bolhas de sabão ao vento, sem controle ou direção, pousando onde lhe convier, estourando deixando a mancha indetectável lá.

E eu faço de conta que é normal rir disso, de que existem mesmo zumbis, aqueles que não acreditam no vírus porque não o enxergam (nem quero entrar no capítulo de que nossos governantes não acreditam no vírus, um terraplanismo imperdoável, que já está custando várias vidas) e se não se enxerga não deve ser verdade, deve ser montagem da mídia. Sim, caro zumbi, todos aqueles corpos empilhados, espalhados, embalados, é tudo ficção, é cenário, o mundo inteiro está mentindo e só você, floquinho de neve no interior de Paranapiacaba, é quem sabe a verdade.

Outra palavra tão vestida que chega a estar rasgada, sem ser possível de ser remendada. O que é verdade? E de que adianta saber a verdade? De que adianta saber que água, sabão, álcool, máscara, luva, tudo isso é hoje item de primeira necessidade, e que hidroxicloroquina, apesar de tanto esforço de diversos governos e desgovernos por aí, não teve sua eficácia ainda comprovada cientificamente. De que adianta estudar e conhecer o método científico, se basta um microfone dourado e um chapéu de cowboy pra invalidar séculos de pensamento e construção de conhecimento?

Mas eu sigo fazendo de conta que é normal. Venho fazendo de conta que é normal. Venho seguindo a vida normal já há tanto tempo, que o vírus, o caos, mais um medo, são só mais alguns itens da longa lista de absurdos que venho vivendo e fantasiando de vida normal.

Então eu acordo com o despertador, mesmo estando "em férias" no trabalho. E sigo esticando o conceito de normal, e penteando o cabelo, e tomando café, e lendo as notícias, e preparando almoço e lanche, e sigo estudando, e sigo respirando, e me entorpecendo de seriados para conseguir dormir, para que a vida siga, não sei por mais quanto tempo, normal.