junho 29, 2022

Tudo ao mesmo tempo agora em todo lugar

 Têm sido dias longos, estranhos, cinzentos.

O inverno tem arrastado seu manto de chuva e névoa por tudo, como uma lã sobre os olhos. Em dias assim é fácil perder a perspectiva das coisas, é bem fácil se perder na narrativa. E todos os dias acabam ficando misturados, num mingau de segundasterçasquintasfeiras sem distinção.

Mas de vez em quanto algo acontece, uma luz se acende. E a gente sabe, ou pelo menos já deveria saber, que basta uma pequena luz para que não haja mais escuridão.

Em muitos casos essa luz vem pela arte. Pra mim, na maioria dos casos, essa luz costuma vir do cinema. 

Fazia muito, muito, mas muito tempo que eu não chegava no cinema e me emocionava a ponto de ter os olhos lacrimejando de ficar com a visão turva.

E aconteceu hoje. Na cena das pedras. Uma cena em que nada acontece, contradizendo o título, e nada é dito (apesar de tudo estar ali hahaha), pelo menos não com palavras, como nós conhecemos, e há um silêncio pleno e robusto (não vazio nem sem sentido). Pensei em um milhão de coisas, acessei todos os universos que conseguia, e só consegui pensar que é isso, arte, o poder de nos sacudir e nos tirar do torpor de dias iguais e acessar todo um arco-íris de sensações e sentimentos provocadores.

Eu nem sabia que precisava desse filme, mas eu precisava.


 

(estou tentando falar do filme, mas sem falar do filme, e sim falar do que o filme provocou em mim, para lembrar, para guardar, para acessar numa próxima sequência de dias emendados e iguais.) (Sei que meu pai iria amar esse filme. Ou ama esse filme. Ou já amou esse filme.)

A arte nos provoca a estarmos no lugar em que estamos ao mesmo tempo que nos carrega para todos os lugares que podemos estar.

E é tão lindo isso, de que agora a gente pode falar de multiversos e diferentes possibilidades sem ser chamada de doida ou ser olhada de forma atravessada, porque é isso, existem múltiplas possibilidades, e a gente acessa aquelas que quer, ou, ainda, aquelas que consegue alcançar.

Na Cabalá, há muito se diz que não existe tempo e espaço nos Mundos Superiores, e que para nós esses são os limitadores do nosso mundo, da nossa realidade, mas que essa realidade não é a única. E que, sim, é isso mesmo, tudo acontece ao mesmo tempo agora em todo lugar no aqui-e-agora em que estamos.

O mais legal é essa ideia de que cada escolha que fazemos vai criando novas possibilidades e novas realidades e time-space continuums em que versões de nós vão vivendo as consequências das escolhas tomadas lá que não foram tomadas aqui. Ou seja, todas as escolhas são tomadas, escolhemos todos os caminhos, diferentemente do que falava Frost. Basta que a gente acesse qualquer um deles.


Ou todos ao mesmo tempo.

Acho que preciso assistir de novo.

julho 13, 2020

Berinjela

Hoje eu pedi a berinjela do restaurante que nós íamos, aquela berinjela famosa que o garçom não sabia a receita e o cozinheiro não sabia português, e que eu comentei brincando que casaria com a berinjela e virou referência para qualquer coisa que veio depois, que iria ser comparada, mas trocaria a berinjela?, trairia a berinjela?, virou uma piada interna nossa que a gente (você) tentou dividir mas que não fazia o menor sentido fora da pequena bolha em que orbitavamos, uma bolha brilhante mas pequena, que eu nunca entendi se era feita de amizade ou da ilusão de uma amizade, se da existência ou da expectativa de um vir-a-ser que nunca se cumpriu.

Hoje eu pedi a berinjela e tirei foto mas não tinha como te mandar. Não tenho como te mandar. Não somos mais amigos. Essa é a frase que mais me dói, de pensar que não somos mais amigos. Que não orbitamos, que não temos mais nosso planetinha de referências, memes e emails longuíssimos com confissões e planos e dissertações a respeito do mundo.

Assim como não temos mais o casamento da berinjela, não temos mais clube da música do dia. Não temos mais mensagens com vogais de outras línguas, nem com onomatopeias inventadas só porque sim.

Dos namoros que acabei, também perdi várias coisas, memórias e histórias, fotos, referências, músicas, espaços em que deixei de circular, mas tudo isso eu já contabilizava na separação: o divórcio é também das amizades e dos lugares, quem fica com os copos e quem fica com as fotos. A gente não espera que um casamento acabe, mas entende. Mas uma amizade, a gente nem espera, nem entende. Quer dizer, eu não esperava, e não entendo.

Porque eu sempre acreditei na existência de amizades assim, sólidas e leves, com confiança, abertura, espaços livres de julgamento, todos os assuntos são bem vindos, uma amizade de poder chorar, de poder gritar, de poder rir, de poder pedir ajuda, não importa o que estivesse acontecendo. E eu acreditei que nós éramos assim.

Hoje tento olhar para trás, refaço os passos e as palavras, oscilo entre achar que você me enganou e achar que eu mesma me enganei, tentando entender o que aconteceu. Talvez eu saiba o que aconteceu. Talvez eu tenha feito acontecer.

O fato é que já se vão quase quatro meses de isolamento e o único ex em que penso com frequência é você, querendo saber se está bem, se está se cuidando, se está vivo. Hoje mais ainda. Pedi a berinjela do restaurante em que íamos, pedi a nossa berinjela, e não tinha com quem dividir essa pequena alegria.

Espero que você esteja bem. Espero que esteja se cuidando e esteja contando pequenas alegrias, também, em meio ao mundo derretendo. Não espero que esteja pensando em mim, ou que queira falar comigo porque é esperar demais.

A berinjela continua a mesma. Ainda casaria com ela. Mesmo não sabendo a receita. Pelo menos isso.

julho 02, 2020

102 - Thank you, Tom Cruise

Espero que vocês estejam bem. Eu estou. Sim, o mundo tá derretendo, eu sou uma das 20 pessoas que está em casa há exatos 102 dias, evitando todo tipo de saída desnecessária, mas não era sobre o mundo derretendo ou minha semi-prisão domiciliar que queria falar, queria contar uma coisa estranha que está acontecendo.  

Como este texto foi originalmente escrito para o twitter, eu começaria este segundo parágrafo com uma frase engraçadinha, falando "ei, vocês, que estão aí" para o Imenso Vazio. O fato é que no twitter estavam mesmo todos falando de Dark, esse seriado alemão da Netflix que fala de viagem do tempo e coisas assim. Estava com super vontade de ver, mas não estou conseguindo.


Uma força maior que eu chamada ansiedade está me impedindo de ver qualquer coisa que eu não tenha visto antes. Não estou conseguindo assistir nada que eu já não saiba com antecedênci o que vai acontecer. 

Já não vinha assistindo nada de terror há algum tempo, e vinha diminuindo e diminuindo suspenses em geral, mas agora não está rolando. Aproveitei que estava no tuírer pra desabafar sobre os terríveis hábitos de streaming que adquiri nestes últimos 102 dias, e achei que não seria justo só o tuírer ler o meu desabafo.

Primeiro, revi todas as 16 temporadas de Grey's Anatomy. Todas as 16. Sim, #benloka. Pra ser bem, bem, bem, bem sincera, já estava na temporada 9, porque não queria chegar na 11 e rever A Grande Morte*. Sim, todo mundo morre, é uma tragédia atrás da outra, drama e sangue e mais drama, mas é um drama conhecido, é uma tragédia já chorada, é um sangue que eu sei onde vai espirrar. 



Depois de todas os dramas, mortes, sangues e lágrimas de Grey's Anatomy, revi Parks And Recreation, que é um afago e um abraço na alma.



Não sem antes ter visto toda a franquia Jurassic (Park e World) e ter mergulhado de cabeça no mundo do Mission: Impossible. Que só vieram a confirmar minha teoria de que o segundo filme é sempre ruim, de qualquer saga.



 
Teve um domingo de Poderoso Chefão**. Mas quando eu cheguei no M:I minha alma se acalmou de tal maneira que até leituras e trabalhos da faculdade começaram a fluir melhor. (sim, deixo filmes rodando pra ler)(não, não tem explicação científica)(sim, funciona, pelo menos comigo)(não, não recomendo, não tenho explicação.) 



Também revi (estou revendo, ainda não cheguei no final) Gilmore Girls, a série original. Também deixei várias vezes o filme da Liga da Justiça passando para conseguir dormir (works like a charm). Mas tem algo de calmante e acolhedor no sorriso cientológico do Tom Cruise que... 




... que me fez assistir e reassistir a todos os Mission Impossible, menos o último, várias vezes. O dois é estapafúrdio, basta ver a cena inicial e toda a aflição daquela pedra e ele se pendurar sem fio e sem proteção, e preciso confessar que não gosto do J. J. Abrams, porque acho que tudo que ele toca ele estraga, e não foi diferente com a série (mais explosões, mais cenas gigantescas com coisas grandes e brilhantes e menos roteiros, menos espionagem, menos mistério) mas tem sido my own personal chá de camomila com passiflora. 


Pois então, se estiver alguém lendo aposto que vai me perguntar, mas como assim, tudo explode, tem tensão e suspense, e violência, e tudo explode de novo e tiros para todos os lados, e como assim isso te acalma? Sim, isso me acalma porque eu sei, não exatamente fala por fala, explosão por explosão, mas eu sei o que vai acontecer em cada cena.  



Por exemplo, sei que o Tom Cruise não morre nem explodindo o Kremlin. Ele se joga de pedras, prédios, pontes, aviões e fica tudo bem. Ele não morre nem se ficar embaixo d'água sem oxigênio por mais de três minutos, nem se uma micro bomba foi colocada no cérebro dele pelo nariz. Tudo vai dar certo. Os mocinhos sempre vencem.



O bandido sempre expõe seu plano e o plano é falho, e dá tudo errado e o bandido morre e o mundo é salvo de uma crise global, de uma explosão nuclear, de um colapso econômico ou tecnológico, qualquer coisa que possa servir de ameaça, não importa a ameaça podemos ficar tranquilos porque o Tom Cruise vai resolver. Com um sorriso no rosto.



As pessoas normais, os coadjuvantes, que numa situação de vida real seríamos nós, transeuntes, passantes, gente cuidando da sua própria vida, nunca ficam sabendo da ameaça da qual escaparam por graça e obra do Tom Cruise. A ignorância é uma bênção, e tudo dá certo no final. Isso me acalma demais.



Mas aí eu achei outro calmante. O que foi um alívio para o Netflix, que já estava me mandando mensagens to tipo: "Amiga, tá tudo bem com você? Amiga to preocupada, você tá com dificuldade de entender o filme? Qual parte de se jogar do prédio que faltou entender? Tá tudo bem mesmo? Quer conversar?"

E aí para alegria de todos eu achei outro calmante. Chama Sweet Magnolias. E é tudo que o nome dá a entender.



Sweet Magnolias é também um filme, com a maravilhosa Dolly Parton, e tem livros, mas não cheguei a pesquisar, mas o seriado começou agora, tem apenas uma temporada (espero de coração que façam mais) e é o tipo de seriado em que nada acontece. E, olha, isso não é uma coisa ruim.



Se fosse em outro momento da vida eu acharia um porre, mas agora, em situação de pandemia, to achando ótima.



Vem comigo: imagina uma cidadezinha do interior da Carolina do Sul, coreto, pracinha, escola, o restaurante em que todo mundo se encontra, numa cidade em que todo mundo se conhece, e em que todo mundo se mete na vida de todo mundo, e a história mostra a vida de 3 amigas, e os supostos dramas envolvendo a vida delas. Eu digo supostos, porque depois de Grey's Anatomy nenhum drama é drama de verdade.



Mas voltando: a história começa com uma delas passando por um difícil divórcio. Uma das amigas é a advogada. Elas e o ex estão brigando pela casa. Você imagina que o pior vai acontecer e tudo tudo errado e o ex vai deixar ela na rua? Que nada.
 
A advogada conversa com ele e ele concorda em deixar a casa pra família. Uma das amigas tem dois filhos, e um dos filhos fala uma coisa na escola que deixa o irmão numa situação embaraçosa. O irmão vai tirar satisfações. Você acha que eles vão brigar, de soco, certo?



Que nada, eles riem e se abraçam. Uma das amigas encontra a atual do ex, grávida, fruto da traição do ex. Ela vai jogar uma lata de tinta na cara da grávida? Vai gritar? Vai fazer escândalo? Que nada, ela é simpática, e sugere cores, e deseja tudo de bom. 


 Quer mais um exemplo? Tem uma soccer mom que fica incomodando umas das amigas. As duas marcam eventos no mesmo dia e ficam competindo pela presença dos vizinhos nos eventos. A amiga vai lá tirar satisfação? Nada disso, ela leva um presente, diz que deseja muito sucesso e que se a soccer mom tiver tempo pode dar uma passadinha lá pra curtir a festa dela. Não é maravilhoso? Parece que nada acontece, e nada acontece mesmo, no sentido daquilo que estamos acostumados: explosões, traições, envenenamentos, seringas em elevador, fantasmas, hotéis cercados de gelo e neve com machados e rios de sangue, perseguições, decapitações, tiros, mortos empilhados. Acabamos nos acostumamos tanto com isso tudo na ficção que não esperamos nada de diferente nem sequer na vida real.

Já assistimos esperando que alguém morra, que  alguém traia, que alguém roube, que alguém chantageie, que alguém ameace, e que alguém seja desonesto. Não em Serenity, não aqui em Sweet Magnolias.



As pessoas são normais, agem corretamente (tentam) e as confusões em que se metem são por puro ruído de comunicação. To achando maravilhoso. Já quero morar em Serenity.  

Porque é disso que estou sentindo falta, das banalidades de um dia em que nada acontece de especial, de um dia em que você sai de casa e não tem um meteoro, ou um novo Zika, ou um terremoto gigantesco, ou, sei lá, uma nuvem de gafanhotos, um derretimento das calotas polares, um rio de sangue.
 
Estou sentindo falta de sentar com as amigas e, entre drinks e comidas e risadas, dizer "tá tudo bem, não tem nada de mais acontecendo, só vida normal". De não ter a preocupação de vida e morte que está pressionando a atmosfera, nos deixando pesados e arrastados.

Agora se vocês me dão licença, eu vou voltar ali pra outra tela e voltar pra Serenity pra acompanhar mais um dia normal, com um jogo de baseball normal, que vai acabar com todo mundo comemorando com milk-shakes.


 

 
 

 

 


 


abril 23, 2020

Tempos estranhos

Tempos estranhos de sonhos estranhos, desejos estranhos, vontades estranhas.

Tenho acordado muito mais cedo do que o normal, e tenho ido dormir muito mais cedo que o normal, como se meu corpo se acostumasse com a luz solar e dependesse disso. Desde que começou a quarentena, em longínquas cinco ou seis semanas atrás, já queimei várias lâmpadas na casa, uma sendo no meu quarto e uma sendo no banheiro. Coisas estranhas têm acontecido também.

Hoje sonhei com um roteiro inteiro, estava numa situação de fuga, esconderijo, como já aconteceu em diversos outros sonhos destes tempos estranhos, mas desta vez eu tive uma ideia genial. E eu percebi que estava dormindo, então disse para mim mesma que deveria anotar a minha ideia genial, porque era revolucionária demais para ser esquecida.

Era uma ideia para um filme, para um roteiro, para um novo tipo de filmes, que seria revolucionário e inovador.

Sim, eu lembro. Com todos os detalhes. Minha mente é estranha assim.

Não, eu não vou dividir aqui a minha ideia genial e inovadora. Até porque não é tão inovadora nem tão genial como me pareceu no sonho.

Ou talvez a estranheza não tenha chegado ao fim e a sociedade ainda não esteja preparada, vai saber.


abril 15, 2020

A opressão da insignificância

O que tem me salvado nesses dias de loucura, aulas online e incertezas, são as conversas online com amigos por vídeo. Marcamos um horário, de fone de ouvido a postos, ligamos nossas câmeras dos telefones e simulamos a normalidade, estamos no sofá de casa, no chão do quarto, a quilômetros de distância, mas por aquele tempo da conversa em que podemos ver mesmo que não possamos tocar, estamos próximos. Não é perfeito, mas tem ajudado.

Normalmente as conversas começam com relatos de medos e questionamentos, ansiedades, crises de choro e de riso (rindo nervosamente), depois é como se estivéssemos em volta do fogão preparando um risoto, ou em volta da mesa com nossas taças de vinho e os assuntos mergulham na normalidade, no compartilhamento de experiências. E num desses momentos, numa conversa recente, estávamos falando de astrologia, mundos, Árvore da Vida e alguém comentou como havia se sentido pequena, minúscula, na dimensão histórica da vida no planeta, na galáxia. É o que eu chamo de opressão da insignificância. Eu falei, e rimos, mas concluímos que sim, a insignificância oprime.

Nestes dias em que números cada vez maiores, gigantescos, são constantemente bombardeados na nossa cara, sempre na casa dos milhares, milhões, bilhões, seja de mortos, contaminados ou dólares, cada vez mais somos colocados numa perspectiva de diminuição, de perda de significado, de invisibilidade. A gente se perde nesses números gigantes, nessa dimensão inalcançável, e se afoga.

Que inclusive é uma sensação tanto de embolia pulmonar como ataque de pânico, um afogamento no próprio ar, como se o pulmão se fechasse em si mesmo e não deixasse o ar entrar, por mais força que o diafragma faça, por mais dor que a gente sinta.

O que, somado ao pavor que me tomou, talvez tenha sido o que eu senti quando tinha uns oito para nove anos, depois de assistir a um programa do Globo Repórter sobre o fim do mundo. Eu já devo ter contado essa história, aqui ou em blogs anteriores, mas é um marco pra mim, e talvez seja o momento de contar de novo. Contar clareia, como me ensinaram.

O programa apresentava algumas alternativas sobre como se daria o fim do mundo. Por uma guerra nuclear (e essa era uma grande possibilidade, uma vez que o Muro de Berlin ainda estava em pé e havia toda a ameaça que vinha dos dois lados), por uma explosão do sol, pelo fim da camada de ozônio, e mais alguma outra que não vou me lembrar. Aquilo era tão mas tão mas tão real pra mim quanto a certeza de a grama do quintal de casa era verde e que o céu era azul. A possibilidade de tudo aquilo acontecer era enorme, gigantesca, e eu deitava na minha cama de criança rodeada de bonecas e brinquedos e sentia o teto se fechar em cima do meu peito e o desespero tomar conta de mim. O mundo iria acabar, eu tinha certeza, e seria logo.

Quando o Muro de Berlin colapsou, e pelo menos uma ameaça saiu da lista, eu lembro de pensar apenas, ok, uma possibilidade a menos. Quando as Torres Gêmeas colapsaram e a opção da guerra voltou à mesa é que me dei conta do quanto tempo carregava em mim o peso do fim dos tempos. A opressão da insignificância. A certeza de que não adianta o quanto eu lute e mude e conscientize e fale e transforme, nada disso tem valor ou sentido perto da vastidão do Nada Sem-Fim do universo em movimento.

2020 tem sido um teste de ferro para os nervos. Já tivemos ameaça de guerra, já tivemos incêndios e crise econômica, agora temos vírus, temos vulcões, temos fumaça tóxica. Nada que possa ser impedido ou mudado por mim. Tudo gigantescamente maior e mais poderoso do que eu possa conceber ou interferir de alguma forma. A minha insignificância novamente me oprimindo, me apertando o peito, me impedindo de respirar.

E entre o pavor de ver tudo acabar e a vontade de que tudo acabe logo a gente tenta não pirar muito, a gente tenta seguir a vida (de dentro de casa mesmo), a gente se apega aos pequenos prazeres, como dar risada com os amigos pela câmera do celular.




abril 09, 2020

Fake it 'till you make it

"Pretend it's normal" tem sido meu mantra nesses últimos dias.

Eu faço de conta que é normal ficar em casa, de quarentena. Faço de conta que é normal evitar contato físico com as pessoas, faço de conta que não quer abraçar minha sobrinha, que é muito normal passar álcool em qualquer lugar que eu tenha sido tocada por algum estranho na rua.

Eu faço de conta de que é normal chegar em casa como quem sai de uma câmara radioativa de fissão nuclear: tirar sapatos, lavar as mãos, deixar a roupa para lavar, passar água sanitária nos produtos que vieram da rua, tomar banho. Faço de conta que é normal sair com os cabelos presos para que não precise tocar no rosto, e que é normal sair de máscara, e que é mais normal ainda ver todos de máscara, e ter sempre um spray de álcool ou desinfetante para esterilizar tudo que for ser tocado.

Eu faço de conta que é normal lidar com doenças e hospitalizações e cirurgias em meio ao caos, e faço de conta que é normal a sensação de que não está limpo o suficiente e medir cada gesto, meu e dos outros, e ficar traçando os pontos onde os dedos tocaram, maçaneta, cabeceira da cama, braço da cadeira, porta do armário, e ficar lembrando se chegou a lavar as mãos antes, se chegou a trocar de luvas entre o paciente anterior e agora, se eu mesma fiz isso.

Eu faço de conta de que é absolutamente normal viver esse medo do invisível, o monitoramento constante de temperatura, tosse, dores, tanto minhas como dos outros, sintomas, vestígios do mal que se esconde embaixo das unhas, na sola dos sapatos, no ar que sai dos pulmões.

Então é assim o fim dos tempos. Já pensei isso tantas e tantas vezes, só neste 2020, que está ficando um pensamento desbotado. Já não tem força a expressão fim dos tempos, de tanto que esticamos e tiramos do lugar. Mas é isso. O fim do mundo não chega com uma explosão (graças aos céus) mas com um suspiro, mesmo, com o ar úmido saindo quente dos pulmões, as gotículas voando feito bolhas de sabão ao vento, sem controle ou direção, pousando onde lhe convier, estourando deixando a mancha indetectável lá.

E eu faço de conta que é normal rir disso, de que existem mesmo zumbis, aqueles que não acreditam no vírus porque não o enxergam (nem quero entrar no capítulo de que nossos governantes não acreditam no vírus, um terraplanismo imperdoável, que já está custando várias vidas) e se não se enxerga não deve ser verdade, deve ser montagem da mídia. Sim, caro zumbi, todos aqueles corpos empilhados, espalhados, embalados, é tudo ficção, é cenário, o mundo inteiro está mentindo e só você, floquinho de neve no interior de Paranapiacaba, é quem sabe a verdade.

Outra palavra tão vestida que chega a estar rasgada, sem ser possível de ser remendada. O que é verdade? E de que adianta saber a verdade? De que adianta saber que água, sabão, álcool, máscara, luva, tudo isso é hoje item de primeira necessidade, e que hidroxicloroquina, apesar de tanto esforço de diversos governos e desgovernos por aí, não teve sua eficácia ainda comprovada cientificamente. De que adianta estudar e conhecer o método científico, se basta um microfone dourado e um chapéu de cowboy pra invalidar séculos de pensamento e construção de conhecimento?

Mas eu sigo fazendo de conta que é normal. Venho fazendo de conta que é normal. Venho seguindo a vida normal já há tanto tempo, que o vírus, o caos, mais um medo, são só mais alguns itens da longa lista de absurdos que venho vivendo e fantasiando de vida normal.

Então eu acordo com o despertador, mesmo estando "em férias" no trabalho. E sigo esticando o conceito de normal, e penteando o cabelo, e tomando café, e lendo as notícias, e preparando almoço e lanche, e sigo estudando, e sigo respirando, e me entorpecendo de seriados para conseguir dormir, para que a vida siga, não sei por mais quanto tempo, normal.

outubro 10, 2019

Tantas e tanta voltas

O mundo já deu tantas e tantas voltas, desde que escrevi aqui pela última vez.

Já morri e renasci, já fui destruída e remontei os pedaços, já me joguei do penhasco, e todas as vezes eu mesma me resgatei porque é assim que acontece, na maioria das vezes a gente joga a boia pra si mesmo, e nas vezes que a gente se deixa afogar a si mesma são as vezes que a gente aprende quão longe vai com o fôlego.


Ano passado eu fiz 40, não fiz uma grande festa, não comemorei coletivamente, não gritei para o mundo.

Já disse T. S. Eliot, que o mundo acaba num suspiro, e não numa explosão, e eu cada vez mais entendo.

São as pequenas finitudes, essas que se derramam em suspiros discretos, as que mais importam. A grande explosão comove multidões, mas não é ela que põe fim às histórias. Não é ela que permite novos recomeços.

Esses dias eu pedi um sinal. O Universo não falha em me ouvir e me responder, mesmo que muitas vezes eu não esteja muito atenta.

Uma amiga que quase nunca me escreve mandou uma mensagem dizendo que lembrou de mim porque seu navegador autocompletou o endereço do blog antigo. Achei auspicioso.

Eu queria falar do memento mori e queria falar do pão da vergonha, e de quão longos são os processos de entendimento de si mesmo, e quando eu digo longos, eu digo quase uma década para um entendimento.

Não sei se vou conseguir, só sei que esta é mais uma boia que eu lanço a mim mesma, já que ninguém mais vai fazer isso.